Andava com uma sensação detestável em relação ao ser humano. Um temor imenso de que todo mundo fosse uma farsa e de uma hora para outra eu fosse me decepcionar e sentir dor. E como não queria pensar sobre, parece que tudo isso criou mais força, dobrou de tamanho e me dominou por inteira, quase me consumindo. A cada dia me isolava mais. Queria meu mundo, meus livros, meus filhos, meu cachorro, minhas músicas e nada mais. Quase me paralisei, tamanha angustia. Após semanas me sentindo assim, decidi que era hora do balanço.
Trabalho naquilo que escolhi e adoro, tenho filhos maravilhosos, um amor tranquilo. Fora essas coisas "miúdas", cotidianas que, cada qual a seu modo, todos vivenciamos, ainda pulsa dentro de mim uma paz que vem da certeza de que tudo que experimento aqui é só um pedacinho (ainda que muito significativo), de uma imensidão que aguarda a todos nós. Enfim, independente de todos os imensos reveses, tenho uma vida que faz sentido. Acredito no propósito da minha existência. Porque, então?
Aí, deparei-me (obviamente não por acaso) com uma frase de Miguel de Cervantes: "Ah, memória... Inimiga mortal do meu repouso!" Pronto! Estava aí a razão da minha angústia de tantas semanas. Lembranças. Ou melhor, mais do que lembranças, memórias ainda que aparentemente mortas, vivas a me dominar. E, apesar de não sangrar mais, não me deixam seguir leve. Uma vivência passada com o poder de me manter prisioneira. Fui cruelmente marcada, como se faz com o gado. (Perfeito exemplo...) Diversos pânicos: de experimentar aquela dor de novo, de sofrer a mesma decepção, de levar outra rasteira, de olhar para outros olhos tão falsos acreditando-os sinceros, de que cada palavra que ouço seja mentira, de que tudo seja uma farsa, de que todos sejam também doentes, desses que parecem normais, mas não são. Desses que dão significado à sua existência a partir da dor que causam aos outros. Fiquei com medo de gente, e nem desconfiava disso. Estava sendo injusta, julgando as pessoas, considerando que a distância de todas elas seria mais segura do que qualquer proximidade, por menor que fosse. Nem uma boa conversa consegui engatar com o professor de literatura durante o jantar da escola. Começo bem, mas em 15 minutos já imagino que ele está ali tentando me impressionar, me manipulando com a finalidade de atingir um objetivo previamente calculado.
Temi estar surtando. Um namoro bom (pelo simples fato de me fazer muito bem) que quase jogo pela janela porque me embrulha o estômago ao ouvir o que toda mulher adora - frases apaixonadas. Eu passei a recebê-las como um punhal venenoso - a poderosa fala articulada, desprovida de qualquer significado, dita em toda esquina a qualquer uma. Peço-lhe, então, que não as diga a mim, juro que não gosto de ouvi-las, explico que prefiro apenas viver aquilo que seria dito. E ele não entende, claro. Mas respeita, até que em um momento qualquer, as emoções vêm à tona e ele diz. E nesse momento eu quero ir embora. Eu apago onde todas acendem.
Retornei à terapia. E ouvi o que já sabia. Sofri um trauma. Para falar a verdade não me conformo. Já passei coisa demais na minha vida para aceitar que aquela experiência tenha tido o poder de me causar tamanho mal. Casamentos desfeitos depois de décadas, projetos no ralo, vida recomeçada, e eu, sempre forte e cheia de esperança. Tinha que haver uma explicação para tamanho estrago. Não poderia perder a fé no ser humano. No amor. Na amizade. Na lealdade. Não poderia me perder, perder a minha boa fé por causa de uma breve história. "Breve história, mas com o poder de destruição de uma bomba nuclear pelo fato de ter como protagonista uma pessoa que não é como eu e nem como você." Bastou ouvir isso da minha terapeuta, após 7 sessões para que eu me desse alta. Resignifiquei tudo. Agora creio que possa seguir por outro caminho. Resgatando meu bom senso que sabe que não posso condenar a humanidade por conta de uma exceção... Cruel demais, é fato, com alto teor de periculosidade, também é fato, mas ainda assim, nada mais do que uma mera exceção entre os milhões de seres humanos.